UMA GRANDE ESPERANÇA

 Por Papa Francisco

A Sagrada Escritura ensina-nos que Deus criou o mundo. A liturgia da Igreja revela-nos, depois, que Ele o fez “para infundir o seu amor” (Missal Romano, Prefácio da Oração Eucarística IV) sobre tudo aquilo que do nada vinha à vida.

Tudo quanto existe traz, portanto, consigo um sinal, um traço, uma memória – ousarei quase dizer genética – que remete para o Pai. Isto significa que, em tudo quanto existe, o Pai dá-se, e portanto, podemo-lo encontrar, podemos ter uma experiência do seu amor, percebendo uma centelha da sua paternidade. Não existe nada tão pequeno ou pobre que não traga em si esta origem, ou que a possa perder totalmente. Podemos assim tomar emprestadas as palavras do autor do Livro da Sabedoria, que se dirige a Deus, dizendo: “Tu, de fato, amas todas as coisas que existem, e não experimentas desgosto por nenhuma das coisas que criastes; se tivesses odiado alguma coisa, não a terias sequer formado. Como poderia subsistir uma coisa se Tu não a tivesses querido? Poderia conservar-se aquilo que por ti não foi chamado à existência? Tu és indulgente com todas as coisas, porque são tuas, Senhor, amante da Vida” (Sabedoria 11, 24-26).

Existe, por isso, uma ligação contínua, radical, entre tudo aquilo que existe: o mundo provém de um Deus amor que no mundo se doa, e nos chama a partilhar este seu modo de existência. A criação, todavia, não é, como muitas vezes se pensa, simplesmente natureza e ambiente.

Nós somos criaturas, mesmo o tempo que passa é criatura. Isto quer dizer que não existe nenhuma situação, nenhuma provação ou crise, nenhuma alegria ou sucesso, em que não se possa fazer experiência do Senhor, dar um passo na sua direção para crescer na amizade com Ele, e para poder por nossa vez amar, enquanto loucamente amados.

Tudo o que existe, existe, portanto, para poder “viver” como Deus, isto é, como dom, como amor acolhido e entregue. Mas a criação só pode viver isto através do ser humano. Só no ser humano, microcosmo que condensa em si o universo, mas que vive do sopro que o Deus pessoal insuflou diretamente no seu rosto, o mundo pode corresponder à sua secreta sacramentalidade, ou seja, ser visto como dom. Um dom é sempre uma realidade pessoal: de alguma forma contém quem o deu, e pede àquele a quem é oferecido que o veja assim, como uma realidade transparente do rosto do doador, um dom feito para conhecer quem se ama e fazer da vida do outro uma comunhão consigo.

É tarefa do ser humano decifrar de maneira livre e criadora a revelação deste dom. E é igualmente tarefa do ser humano tomar o mundo na sua comunhão com Deus. A criação é, por isso, um lugar em que somos convidados a descobrir uma presença. Mas isto significa que é a capacidade de comunhão do ser humano a condicionar o estado da criação. Esta é a nossa grande responsabilidade.

Quando não conseguimos decifrar a presença que habita as coisas, tudo se torna banal e opaco, deixa de ser um meio de comunhão, e torna-se uma ocasião de tentação e de tropeço. Tudo isto começa no coração de cada um de nós, e difunde-se através de pensamentos, intenções, comportamentos, hábitos, seja a nível singular seja de grupos sociais. Para fazer parte desta cadeia que banaliza ou deturpa o dom da criação não é preciso ser criminoso: é “suficiente” não reconhecer o dom que o outro – qualquer outro – é, do familiar ao vizinho da casa, do colega de trabalho ao pobre que encontro na rua, do amigo ao migrante que procura trabalho ou um apartamento onde viver… Isto que acontece no coração do ser humano tem um significado universal e imprime-se no mundo. É, portanto, o destino do ser humano a determinar o destino do universo.

Precisamente porque tudo está ligado (cf. “Laudato si’” 42; 56) no bem, no amor, precisamente por isso toda a ausência de amor tem repercussões sobre tudo. A crise ecológica que estamos a viver é, assim, antes de tudo um dos efeitos deste olhar doente sobre nós, sobre os outros, sobre o mundo, sobre o tempo que passa; um olhar doente que não nos faz perceber tudo como um dom oferecido para nos descobrirmos amados. É este amor autêntico, que por vezes chega até nós de maneira inimaginável e inesperada, que nos pede para revermos os nossos estilos de vida, os nossos critérios de juízo, os valores sobre os quais fundamos as nossas opções.

Com efeito, é hoje sabido que envenenamento, alterações climáticas, desertificação, migrações ambientais, consumo insustentável dos recursos do planeta, acidificação dos oceanos, redução da biodiversidade, são aspetos inseparáveis da desigualdade social (cf. “Evangelii gaudium” 52-53; 59-60; 202): da crescente concentração do poder e da riqueza nas mãos de pouquíssimos e das denominadas sociedades do bem-estar, das insanas despesas militares, da cultura do descarte e de uma falta de consideração do mundo do ponto de vista das periferias, da ausência de salvaguarda das crianças e dos menores, dos idosos vulneráveis, das crianças por nascer.

A ecologia é ecologia do ser humano e de toda a criação, não só de uma parte. Como numa grave doença, em que não basta só a medicina, mas é preciso olhar para o doente e compreender as causas que conduziram ao surgimento do mal, assim analogamente a crise do nosso tempo deve ser enfrentada nas suas raízes. O caminho proposto consiste, então, em repensar o nosso futuro a partir das relações: os homens e as mulheres do nosso tempo têm muita sede de autenticidade, de rever sinceramente os critérios da vida, de voltar a apontar para aquilo que vale, reestruturando a existência e a cultura.

Para além do compromisso pessoal e comunitário na conversão da mentalidade – ainda antes que dos comportamentos –, um contributo que podemos oferecer como crentes é precisamente o da visão. E esta visão podemo-la aprender dia após dia da liturgia, que é experiência diária de nos encontrarmos na presença do Senhor ressuscitado e vitorioso, para participar com Ele na salvação de toda a criação.

Isto é particularmente evidente precisamente na Missa, que é o agradecimento a Deus por excelência: nela oferecemos ao Pai aquilo que vem dele (o grão e a videira), transformados pela sábia obra do ser humano para ser o nosso alimento, a nossa bebida, isto é, esses elementos de que nos nutrimos para viver e viver o melhor das nossas capacidades. De um lado, com efeito, todos nós trabalhamos para poder comer, e o nosso alimento é o que nos permite conduzir a nossa existência quotidiana, de nos imergirmos nas relações importantes, de lutar pelas coisas que valem a pena, de dar o nosso pequeno ou grande contributo para a vida do mundo. Pão e vinho são precisamente dois símbolos por excelência, porque mostram a unidade entre o dom de Deus e o nosso empenho, entre o nosso trabalho e aquele, entre o cansaço diário e a alegria das relações e da festa. Ora, na Missa nós oferecemos ao Pai todo o nosso trabalho e o nosso cansaço, e toda a nossa esperança e a nossa alegria; oferecemos-lhe não porque Ele precise ou o pretenda de nós, mas porque quem ama dá, melhor, dá-se. Fazendo esta oferta, admitimos que as coisas, tratadas simplesmente como tais, são um mundo que morre, e a comunhão com este mundo não nos salva.

Só ligando-as a Deus recebemos dele o dom da vida. E, de fato, o que acontece na Missa? Oferecemos tudo, e enquanto oferecemos suplicamos ao Pai que nos envie o Espírito Santo, a fim de que una a nossa pobreza à oferta de Cristo, o seu Filho, que veio para que cada um de nós, nele, se torne filho do Pai. Desta maneira, o nosso pão e o nosso vinho tornam-se Cristo, o dom por excelência do Pai, o nosso verdadeiro irmão, no qual todos finalmente somos e nos descobrimos irmãos.

Acreditamos que o mundo é para o ser humano, porque é dom daquele que nos ama e está ao serviço da vida dos filhos de Deus, assim como cada um de nós está ao serviço dos outros. E como na Eucaristia o pão e o vinho se tornam Cristo porque são banhados pelo Espírito, o amor pessoal do Pai, assim toda a criação (pessoas, coisas, animais, plantas, tempo e espaço) torna-se uma palavra pessoal de Deus quando é usada por amor, para o bem do outro, sobretudo de quem precisa.

Dom, arrependimento, oferta, fraternidade. Eis quatro palavras que dizem uma visão da realidade, da criação, mas que indicam também um caminho de cura da necessidade da posse, do poder, do abuso, rumo à partilha, a colaboração e o respeito. Rumo a uma fraternidade universal – como aquela que nos mostrou S. Francisco de Assis, patrono de quem trabalha pela ecologia, verdadeira ecologia humana, porque tem o sabor do modo pelo qual Deus salva o mundo. Eis a minha grande esperança para o nosso tempo.

Papa Francisco, In L'Osservatore Romano, trad. Rui Jorge Martins, publicado em 17.10.2019