Um inédito de J. Dupuis

Há mais de doze anos da sua morte o teólogo jesuíta Jacques Dupuis voltou a falar de si. No final dos anos noventa e início do século XXI acabou sendo objeto de uma investigação muito polêmica pela Congregação para a Doutrina da Fé por causa de seu livro “Para uma teologia cristã do pluralismo religioso” (Brescia: Queriniana, 1997).

O comentário é de Giorgio Bernardelli, publicado por Il Regno, 22-06-2017. A tradução é de Ramiro Mincato.

Nos Estados Unidos sai, nestes dias, um livro-entrevista póstumo que, com razão, tem sido chamado de "o último testamento" do padre Dupuis, de origem belga, missionário jesuíta por 35 anos na Índia e, em seguida, chamado a Roma como professor na Pontifícia Universidade Gregoriana e consultor do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso.

Do not stifle the Spirit” (Não extingais o Espírito) é o título extraído da Primeira Carta aos Tessalonicenses que o próprio padre Dupuis tinha escolhido para este livro, publicado pela Orbis Books, a editora dos Missionários de Maryknoll. Trata-se de uma longa entrevista com o teólogo, realizada em mais etapas, entre os anos 2002 e 2004, pelo jornalista irlandês Gerard O'Connell, hoje correspondente em Roma para a revista America, e na época da investigação de Depuis, vaticanista de The Tablet e da agência católica asiática UCAN.

Um longo diálogo de 360 graus, onde Dupuis fala da sua vida, dos anos que passou na Índia, do seu pensamento, mas também de todos os antecedentes e decepções pessoais vividos durante o processo conduzido pela Congregação.

Padre Dupuis revisou pessoalmente a entrevista e a entregou ao seu amigo jornalista, poucos dias antes da queda que o levou a morte súbita, em 28 de dezembro de 2004, com a idade de 81 anos (cf. o amplo perfil biobibliográfico publicado por Il Regno-Attualità n. 2/2005, p. 63). Por que, então, só agora o livro foi publicado?

Ninguém realmente leu o meu livro

O próprio O'Connell explica na Introdução: Padre Dupuis pediu para não publicá-lo enquanto João Paulo II fosse o Papa e o cardeal. Josef Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. A razão é fácil de compreender: para evitar que o livro suscitasse novas polêmicas e a reabertura do seu caso; tanto mais que, mesmo depois do fim da episódio, que ocorreu com a “Notificação a propósito do Livro de Jacques Dupuis ‘Para uma Teologia Cristã do Pluralismo Religioso’”, em 2001, que reconhecia "o esforço", do autor de permanecer "nos limites da ortodoxia", mas ao mesmo tempo advertia sobre uma série de "notáveis ambiguidades e dificuldades em pontos doutrinais de grande importância” contidos no livro (Il Regno-doc 5,2001,143.) - padre Dupuis continuou a denunciar um clima de suspeita contra ele, até mesmo dentro da Companhia de Jesus.

Mais tarde, no entanto, ninguém imaginava que à morte de Wojtyla o próprio Ratzingerseria eleito sucessor de Pedro. Circunstância esta que levou O'Connell a manter a entrevista na gaveta mais tempo, para não trair a intenção do pedido do amigo jesuíta.

Acrescenta-se a isso que foram publicados, nos últimos anos, dois artigos em que o teólogo escreveu sua autodefesa a partir das observações feitas na Notificação(conforme artigo publicado por Dupuis em Il Regno-Attualità 16,2003,560.) e - mais em geral - sobre o conteúdo da Declaração Dominus Iesus, documento cristológico da Congregação para a Doutrina da Fé, cuja elaboração acabou entrelaçando-se com sua história. Dois textos que tiveram a autorização de publicação negada pelos superiores da Gregoriana e, finalmente, coletados em 2012 por William Barrows no volume Jacques Dupuis faces the Inquisition (traduzido para o italiano: Perché non sono eretico. Bologna: EMI, 2014).

Mas agora, porém, no clima das reformas desejadas à Igreja pelo Papa FranciscoGerard O'Connell sentiu o momento certo para tornar público também a outra da reflexão do padre Dupuis. Aquela que - além de voltar a abrir a reflexão sobre o significado teológico da relação entre a figura de Jesus e outras tradições religiosas - questiona os meios práticos com que a Congregação atua em seus julgamentos sobre a ortodoxia das posições dos teólogos.

Do início ao fim da entrevista a O'Connell emerge, de fato, toda a amargura do Padre Dupuis, por ter-se encontrado no meio de uma investigação que colocava em dúvida sua fidelidade ao magistério. A sua é uma acusação contra um ambiente e um modo de proceder que não deixa lugar para um verdadeiro confronto. Uma questão não insignificante se considerarmos que o jesuíta belga acreditava que seu livro “Para uma teologia cristã do pluralismo religioso” tinha sido lido de maneira essencialmente distorcida pelos seus acusadores.

Ao então Cardeal Prefeito Ratzinger, hoje Bento XVI, em seu colóquio com o padre O'ConnellDupuis contestava o fato de tê-lo encontrado apenas uma vez - por ocasião da convocação diante da Congregação, que ocorreu em 4 de Setembro 2000 - dois anos depois da abertura do procedimento sobre seu livro, comunicada pelo próprio Ratzinger ao superior geral dos jesuítas Hans Kolvenbach (uma das poucas figuras que o jesuíta diz ter estado sempre do seu lado).

Completei as intuições de João Paulo II

Dupuis percebeu que o Prefeito do Dicastério doutrinal não tinha pessoalmente aprofundado a questão, mas tinha confiado na instrutória altamente crítica a seu respeito realizada pelos seus colaboradores. "Ratzinger – relata O'Connell na entrevista - naquele dia me disse claramente que minhas 188 páginas de resposta para as objeções eram demasiadas e que não podia esperar que a Congregação estudasse todo aquele material". Para além dos nomes e situações amplamente citados na reconstrução do padre Dupuis, o que torna esta história ainda mais atual é sobretudo a referência ao tema da reforma da Cúria romana, proposto expressamente pelo jesuíta belga.

"O meu caso é uma gota no oceano, mas o oceano é feito de gotas d’água", comenta num certo ponto. Na entrevista são mencionados casos anteriores, como os de Congar e de Schillebeeckx, para sustentar que também o exercício da autoridade em relação ao pensamento teológico deve ser um tema aprofundado na reforma.

Em particular, padre Dupuis critica o fato de que a autoridade do Papa é colocada em jogo em cada uma das etapas do procedimento pela Congregação da Doutrina da Fé; a intenção clara - argumentou – é descartar qualquer possibilidade de uma instância de recurso de autoridade superior. Perguntado por O'Connell o que diria a João Paulo IIse pudesse encontrá-lo, o padre Dupuis respondeu que dificilmente isso pode ocorrer com aqueles que acabam sob acusação na Congregação. "Mas se isso acontecesse, e eu pudesse falar livremente - acrescentou - professaria minha lealdade à Igreja e à pessoa do papa por causa do ministério universal da unidade que exercita. Mas não hesitaria em acrescentar também que, se não me engano, muitas das coisas que eu falei e escrevi confirmam a linha seguida por ele em muitos de seus pronunciamentos. Porque o Papafalou enfaticamente da presença universal do Espírito de Deus, ressaltando que toda a oração autêntica, mesmo quando dirigida a um Deus desconhecido, procede em cada ser humano pela ação do Espírito neles".

"Eu queria trazer esse raciocínio às conclusões teológicas e organizá-los num discurso explícito - concluiu o jesuíta belga -. E é verdade que no meu procedimento encontrei algumas hipóteses congeniais que para alguém que parecia contradizer a fé ou a doutrina tradicional da Igreja; mas a incompatibilidade com a fé não foi demonstrada de modo convincente. Parece que houve uma corrida para denunciar e uma tendência a condenar, em vez de um esforço para compreender e uma vontade para discutir; uma total ausência de verdadeiro diálogo impelido pela necessidade urgente de reafirmar ‘identidade cristã’ em face de erros perigosos".

No final, este é o nó da questão do caso Dupuis, junto com o problema, ainda sem solução, da relação entre cristologia e inculturação. Com relação a isso, particularmente interessante é o primeiro capítulo do livro, onde o velho padre jesuíta relata seus trinta e cinco anos na Índia.

Entre as anedotas sobre o pós-concílio, belo e simbólico é o relato de como, depois da aprovação da Constituição Sacrosanctum concilium, na faculdade de teologia de Kurseong, nos montes Himalaias, professores e alunos colocaram-se no trabalho, com suas próprias mãos, para integrarem na reestruturação da capela elementos da tradição religiosa indiana. Um esforço mais bem sucedido do que a "Oração Eucarística para a Índia”, escrito com a mesma lógica, mas nunca aprovada por Roma.

Padre Dupuis considerava uma graça pessoal ter vivido na Índia como teólogo; uma terra que quis percorrer por 2000 quilômetros, numa motocicleta, quando a faculdade se mudara para Nova Delhi. Por meio dessa viagem e de mil outros encontros, explicava ter compreendido que "as tradições religiosas do mundo não representam o esforço das pessoas em busca de Deus através da sua própria história, mas o modo como Deus procura as pessoas".

Por isso a necessidade profunda de buscar um encontro entre a fé plena em Jesus Cristo Salvador do mundo, e o reconhecimento no plano divino da salvação do valor, não apenas de aparência, das outras tradições religiosas. Desafio este que as páginas recolhidas por Gerard O'Connell relançam em toda a sua profundidade e urgência.